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Por que a Globo ignora o passado de Nelson Piquet?

Por Sergio Quintanilha

Por que a Rede Globo não mostra as vitórias de Nelson Piquet? Será que a Vênus Platinada não gosta do tricampeão? Ou será que Nelson só é popular entre os aficionados de automobilismo? Sei lá. Alguma coisa estranha tem aí. Talvez seja alguma estratégia de não levantar a bola de dois ídolos ao mesmo tempo, como veremos adiante.

Fato é que a Globo mostrou duas incríveis vitórias de Ayrton Senna na Fórmula 1 e nenhuma de Nelson Piquet. Primeiro exibiu o GP do Japão de 1988, quando Ayrton fez uma corrida de recuperação e conquistou seu primeiro título mundial. Depois, mostrou sua primeira vitória no GP do Brasil, em 1991, quando ele teve um problema no carro e precisou ir além do limite físico para vencer a prova. Nas duas corridas, Ayrton pilotava pela McLaren.

Havia ainda outras provas de Ayrton Senna que poderiam ser reexibidas, como a primeira vitória na Fórmula 1, no GP de Portugal de 1985, e a vitória no GP dos EUA de 1986, quando ele empunhou a bandeira brasileira pela primeira vez após uma vitória. Detalhe: essa corrida de Detroit aconteceu um dia depois da eliminação do Brasil na Copa do Mundo, para a França, nos pênaltis. E Ayrton chegou à frente de dois pilotos franceses, Alain Prost e Jacques Laffite. Por isso foi mágico. Nessas duas provas, Ayrton corria pela Lotus.

A Globo preferiu ficar só nas duas vitórias com a McLaren. Mas é lícito que os fãs de Nelson Piquet esperassem o mesmo tratamento. Afinal, Nelson também foi tricampeão e também teve vitórias memoráveis. A Globo poderia, por exemplo, mostrar o GP do Brasil de 1983, quando Nelson ganhou em Jacarepaguá com a Brabham. Ou então sua vitória no GP do Brasil de 1986, com a Williams, numa prova em que Piquet e Senna fizeram a dobradinha brasileira. Também poderia mostrar o GP da Hungria de 1986 ou o GP da Itália de 1987, duas provas que também tiveram a dupla Piquet-Senna fazendo 1-2, como se diz na Fórmula 1. Na Hungria, por exemplo, eles travaram um dos maiores duelos da história da F1.

Piquet e Senna seguram a bandeira brasileira no pódio do GP Brasil de 1986: por que a Globo não mostra essa corrida?

Nem vou falar das vitórias de Emerson Fittipaldi, nos anos 70, pois é distante demais para a memória da Globo. Piquet, porém, dividiu as atenções do Brasil com Senna nos anos 80 e no comecinho dos 90. Voltemos à Rede Globo e suas preferências. Já repararam que a Globo adota um ídolo e vai com ele até a morte? No futebol, era o Rrrrrrrronaldinho, que o mundo inteiro chamava de Ronaldo. Rivaldo? Ronaldinho Gaúcho? Não. Era Ronaldo e ponto. Depois, Neymar, que continua sendo o preferido. Guga, do tênis, também foi um brasileirinho padrão, mas durou pouco. Como Bernard, do vôlei, e seu incrível saque “jornada nas estrelas”.

Na música, o preferido é sempre Roberto Carlos, há uns 457 anos. Algumas concessões para Chico e Caetano, mas para a Globo só existe um rei: Roberto Carlos. No lado feminino da música, é Ivete Sangalo e não tem conversa. Na política, estamos na fase de Deus no Céu e Sergio Moro na Terra. Mas antes teve Tancredo Neves e Fernando Collor. Narrador? Sempre Galvão Bueno, o intocável. É o cara que é íntimo de todos os heróis do esporte. A Vênus Platinada gosta disso.

Fato é que a Globo vive buscando heróis. E eles precisam passar aquela imagem de moço bom. Ou boa moça. Pouco importa que não sejam. Ayrton Senna caiu do Céu para a Globo em 1984. O cara era bom no esporte que praticava, então bastou construir sua imagem de brasileiro perfeito. Nelson Piquet era autêntico demais, tinha liberdade demais. Não cabia (e não cabe) no padrão Globo de herói nacional. Talvez seja por isso que não tenha tido uma colher de chá nas reprises esportivas. Dizem que Nelson tem rejeição da torcida brasileira, embora seja querido por todos os jornalistas especializados e por todo o meio do automobilismo. Dizem, mas nunca alguém mostrou uma pesquisa comprovando a teoria.

Para quem busca construir uma carreira como jornalista esportivo, é preciso deixar claro uma coisa. A Globo não é “lixo”, como dizem. Pelo contrário. Seu jornalismo está incomodando quem está no poder porque tem se baseado em fatos. Portanto, não quero que confundam uma crítica pontual, que talvez tenha a ver com alguma estratégia de marketing editorial, com a crítica fascista daqueles que tentam calar a Globo.

Não devemos ter ilusões sobre a parcialidade do jornalismo, ele próprio um palco de luta de classes. Mas podemos olhar essa preferência da Globo na questão Senna-Piquet para entender que onde acaba o jornalismo, ou seja, a notícia, entra a criação de uma imagem no imaginário popular. Isso é feito de várias formas. Uma delas é reforçando o heroísmo do candidato a mito. A Globo construiu a imagem de mito em torno de Senna de maneira tão evidente que nem sequer as migalhas da memória foram oferecidas para outro tricampeão mundial, o grande e inesquecível Nelson Piquet.

Sergio Quintanilha é doutorando em Ciências da Comunicação na ECA-USP e escreve sobre automobilismo desde 1989 – twitter: @QuintaSergio