Entrevistas

Wilson da Costa Bueno: a dura e remota realidade da cobertura especializada em ciência e esporte

Por Luciano Maluly

Entrevista publicada originalmente no volume 4, 2020, do periódico Olimpianos – Journal of Olympic Studies.

Introdução
O jornalismo esportivo passa por um momento de mudanças em decorrência dos problemas causados pela pandemia do novo coronavírus (COVID-19), desde a paralisação, passando pela transferência até a retomada parcial das atividades esportivas. O momento atual revelou, ainda, uma aproximação entre o jornalismo e a ciência, com o surgimento de outras formas de cobertura, como as postagens enviadas pelos próprios atletas, e novos protagonistas, como os profissionais na saúde, entre eles, os especialistas em alimentos, medicina e educação física. Em contrapartida, as fake news também se proliferaram causando uma preocupação não só nos estudiosos, mas também nos consumidores de notícias. Como os jornalistas se preparam e lidam com a atual (e remota) cobertura esportiva é a pauta desta entrevista com Prof. Dr. Wilson da Costa Bueno, professor sênior da Universidade de São Paulo (USP), considerado um dos principais pesquisadores em divulgação científica e jornalismo especializado do Brasil.
Olimpianos: Com a paralisação  (e adiamento) dos principais eventos esportivos, como os Jogos Olímpicos de Tóquio, no Japão, em decorrência da Pandemia causada  pelo novo coronavírus (COVID-19), as notícias em torno das competições, inclusive sobre a performance e a condição física dos atletas, perderam o status de carro-chefe nos periódicos especializados. Qual a sua avaliação sobre o atual momento do jornalismo esportivo brasileiro?
Wilson da Costa Bueno (WCB): A paralisação das atividades esportivas durante a pandemia contribuiu para a redução significativa do espaço dedicado à cobertura esportiva que, apenas agora, com o retorno das atividades (campeonatos estaduais e nacionais), tende a voltar à normalidade. A crise desencadeada pela pandemia também impactou o jornalismo esportivo, com a redução das redações, e mesmo com o desaparecimento de programas e veículos focados no esporte. Provavelmente, pela ausência das torcidas nos estádios e, de maneira geral, pelo fato de as pessoas estarem ainda sob o impacto do noticiário e das consequências da pandemia, que afetou dramaticamente as famílias brasileiras, o esporte, nestes próximos meses, ainda não deverá figurar com a mesma visibilidade na cobertura jornalística. Confesso que, como muitos outros amantes do esporte, assisti a menos prog ramas jornalísticos esportivos neste período, mesmo porque eles ficaram razoavelmente esvaziados pela não realização das competições. Mantive a leitura regular de jornais e percebi facilmente o caráter morno, quase frio, da cobertura esportiva que, ao que parece, se mostra, efetivamente, refém das competições, dos jogos, com pouca disposição e criatividade para desenvolver pautas investigativas que extrapolam os limites do que acontece em campo. Em boa parte dos casos, as matérias eram repetitivas e, infelizmente, a ausência das competições não inspirou os colegas da mídia esportiva para o desenvolvimento de pautas ampliadas que contemplassem o esporte em sua dimensão sociocultural, política e econômica. Com isso, poderiam ter suprido esse vazio que se instalou com a suspensão das competições. O fato de terem reprisado alguns jogos relevantes na história do futebol brasileiro (da seleção
nacional ou de determinados clubes) pareceu, muitas vezes, mais uma alternativa óbvia para preencher o tempo de televisão dedicado ao esporte, do que uma oportunidade para estabelecer comparações sobre desempenho de atletas, táticas, contextos políticos e socioculturais, em diversos momentos da nossa história. As exceções apenas confirmaram a regra.
Olimpianos: As notícias relacionadas às atividades físicas e às práticas esportivas, especialmente na área da saúde, ganharam destaque durante o período de distanciamento social em decorrência da Pandemia causada pelo novo coronavírus (COVID-19). Como estudioso da comunicação científica, como analisa esse fenômeno da pauta esportiva?
WCB: Certamente, as notícias que relacionam atividades físicas e práticas esportivas à saúde ganharam espaço dentre as pautas do setor neste período (na medida em que não havia competições em andamento), mas, a meu ver, elas não têm sido desenvolvidas em profundidade. Limitam-se a indicar os prejuízos causados pela paralisação à condição dos atletas de forma ampla e superficial e mesmo à contaminação de atletas pelo novo coronavírus. Será interessante perceber agora, com o retorno às atividades, se as fontes especializadas em medicina esportiva (médicos, fisioterapeutas, nutricionistas etc.) serão acessadas para um debate maior sobre este tema. Algumas pautas poderiam ter merecido a atenção, como: 1) A ausência das torcidas nas competições esportivas realmente influencia no desempenho dos atletas e neutraliza a vantagem das equipes mandantes, no caso dos esportes coletivos? 2) Quais os níveis de desempenho são mais prejudicados, e por mais tempo, em virtude da paralisação das atividades (capacidade pulmonar, força muscular, perda do ritmo de jogo, motivação em geral)? Quais destas condições são mais difíceis de recuperar a curto prazo? 3) As equipes têm recorrido, com mais frequência, a um psicólogo, tendo em vista o desgaste emocional que a pandemia e suas consequências provocam nos atletas? 4) O número de profissionais de saúde presentes no processo de preparação dos atletas aumentou durante o período de paralisação? Que funções adicionais eles desempenharam neste período, além daquelas com as quais tradicionalmente se ocupam em tempos de “normalidade”?
Olimpianos: Diversos atletas estão “mantendo a forma” em casa em decorrência da paralisação dos eventos esportivos. De que forma a cobertura especializada em ciência e esporte poderia contribuir para o bem- estar desses esportistas?
WCB: Na prática, a maioria dos espaços tradicionais dedicados à cobertura do esporte apenas aborda esta questão de forma residual e, como indicado na resposta anterior, manteve como foco, neste período, a preocupação com a contaminação (real ou potencial) dos atletas pelo vírus, sem se debruçar, em detalhes, sobre a preparação física dos atletas neste tempo de paralisação. Não foram veiculadas reportagens investigativas sobre esta temática, com a indicação de números de atletas contaminados, por exemplo, no futebol de primeira linha no Brasil, ou mesmo sobre as consequências da contaminação no desempenho futuro dos atletas, tendo em vista a ação agressiva do vírus com o comprometimento da capacidade respiratória ou cardíaca. O presidente da República chegou a dar uma dica para a cobertura nessa área, ao afirmar que sua resistência ao vírus (que não se mostrou permanente) se devia ao fato de ter sido atleta. A pauta básica poderia ser: os atletas são menos suscetíveis ao vírus? Por quais razões? As redações, em muitos casos, chegaram a incorporar, em seus espaços (jornais e revistas) e tempos de veiculação (no caso do rádio e da TV), as informações (e mesmo os vídeos) postadas pelos atletas para mostrar que eles continuavam se preparando, ainda que em casa, mas raramente buscaram o apoio de especialistas para indicar se os exercícios e práticas realizados eram adequados ou suficientes para um pronto retorno. Da mesma forma, não abordaram, com maior profundidade, uma questão básica: a prática de exercícios individuais é suficiente, quando se consideram os esportes coletivos? O problema, a meu ver, não reside apenas em cuidar do corpo individualmente, mas nas interações entre os jogadores que acontecem, e são fundamentais, durante a disputa. Seria interessante analisar ainda a presença e a participação dos treinadores neste esforço de preparação. Eles desempenham uma função não apenas técnica, mas de apoio integral aos atletas. O distanciamento social não prejudicou este aspecto básico da interação entre atletas e treinadores? Uma boa pauta, finalmente, tendo em vista a presença, bastante noticiada pela imprensa, de várias torcidas reunidas em um protesto político contra o governo Bolsonaro, poderia debater se a ausência das torcidas dos campos esportivos, ainda que por um tempo determinado, não pode contribuir para a redução da rivalidade entre elas? Não será o campo de jogo o estopim para o incremento da rivalidade entre torcidas adversárias?
Olimpianos: As mídias sociais e as ferramentas digitais possibilitaram que profissionais de Educação Física e Esporte produzissem e postassem materiais sobre a prática de exercícios físicos em casa. Por que esse conteúdo não é veiculado periodicamente pela mídia especializada em esportes?
WCB: Talvez seja fácil entender as razões pelas quais estes profissionais não passaram a frequentar, com a regularidade esperada, a cobertura esportiva neste período de paralisação: em geral, a pauta no esporte, com raras exceções, não dá atenção a esses detalhes, a não ser quando há comprometimento (lesões) de atletas renomados. A ciência do esporte, com atenção à relação entre saúde e esporte, não é pauta regular para a cobertura esportiva, aparecendo, circunstancialmente, em eventos de grande porte (Campeonato Mundial de Futebol, Olimpíadas), quando, por exemplo, são registrados casos espetaculares (como o doping de atletas célebres nas competições). Seria importante trabalhar pautas de interesse da maioria da população neste momento, como a importância de se praticar regularmente exercícios físicos, e favorecer a visibilidade de blogs, vídeos e espaços virtuais competentes dedicados a essa atividade. Muitos atletas estiveram ativos nas mídias sociais durante a paralisação e é interessante perceber que, em boa parte dos casos, o foco das postagens e dos vídeos tinha a ver mais com as suas atividades enquanto cidadãos comuns, o seu cuidado com a saúde e com a família, do que com a preparação física. É preciso reconhecer que alguns atletas manifestaram saudade d as disputas e vontade de retornar logo às atividades esportivas, mas, em geral, se mantiveram preocupados, prioritariamente, com os riscos de uma volta precipitada. Não sendo estimulados a comentar o que acontece antes, durante e após as competições, porque elas não estavam ocorrendo, ficaram mais à vontade para se apresentarem como pessoas comuns em seu convívio familiar. Embora não tenha acompanhado de perto a divulgação feita pelos profissionais de Educação Física, e talvez não tenha uma visão abrangente deste trabalho, pude perceber, nas vezes em que me deparei com a presença deles como protagonistas da informação, que eles se empenhavam em manter a sua visibilidade e em contribuir para conscientizar os cidadãos sobre a importância da manutenção da forma física em tempos de coronavírus. Assim como outros profissionais da saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, infectologistas, epidemiologistas, nutricionistas), eles buscaram estar presentes na mídia (esportiva ou não) e, alguns descobriram mesmo, na prática, a importância da capacitação para um trabalho de comunicação competente.
Olimpianos: Uma avalanche de notícias sobre a conquista de uma vida saudável, com ênfase em alimentos (das dietas aos nutrientes), medicina (incluindo medicamentos e procedimentos estéticos), educação física e esportes (dicas para melhorar o corpo e a mente), entre outras, está sendo divulgada nos periódicos tradicionais e especializados em saúde. O que o público precisa avaliar para não cair na armadilha das fake news?
WCB: As fake news têm transitado com desenvoltura neste momento, em particular associadas à questão da saúde, quase sempre alimentadas por laboratórios farmacêuticos e por fontes comprometidas com o charlatanismo, interessados em obter ganhos a partir da vulnerabilidade das pessoas nesses momentos de crise sanitária. A infodemia tem estado ativa, com a indicação de medicamentos ou procedimentos sem qualquer eficácia comprovada, bem como pela ação de pessoas não qualificadas que criam ou reproduzem,por ignorância ou má-fé, informações errôneas ou imprecisas. Inúmeros “especialistas de plantão” se colocaram como fontes, inclusive frequentando a cobertura jornalística, com a cumplicidade de redações, para veicular informações não respaldadas em evidências científicas. Alguns espaços, tradicionalmente já frequentados pela propaganda deremédios (como o Domingo Espetacular, da Rede Record, transmitido aos domingos à noite), que oferecem soluções milagrosas para as doenças do corpo e da alma, foram apropriados para divulgação de medicamentos contra a Covid-19, de forma explícita ou sutil. A única forma de combater as fake news com esse foco é valer-se de fontes de credibilidade e assumir uma perspectiva cética em relação a soluções apontadas como panaceia para diversos males. As mídias sociais estiveram e têm estado repletas de picaretas da saúde, com diploma universitário ou não, que recomendam medicamentos ineficazes (o exemplo vem de cima, não é mesmo?) e que, quando confrontados, apresentam como justificativ a a desculpa de que “se não curam, não fazem mal”, o que, evidentemente, não é verdade. Os kits para combater a Covid-19, distribuídos por prefeitos e autoridades em geral, são emblemáticos a este respeito, com a cumplicidade dos governantes e dos próprios órgãos de fiscalização, como a ANVISA, e a omissão, em muitos casos, dos Conselhos Federais de Medicina (caso da cloroquina) e de Farmácia.
Olimpianos: Por fim, qual a formação necessária ao jornalista que deseja se especializar em ciência e esporte?
WCB: É comum imaginar que o bom jornalista esportivo deve estar familiarizado sobretudo com as regras do esporte e isso explica a presença expressiva de ex-atletas (no futebol e em todos os esportes) como comentaristas esportivos. A boa cobertura esportiva não deveria limitar-se à apresentação dos jogos ou comentários sobre o desempenho de atletas ou treinadores durante as competições, mas incluir pautas especializadas sobre temas mais abrangentes, como esporte e saúde, esporte e política, esporte e economia, esporte e sociedade, esporte e psicologia etc. As fontes da cobertura esportiva, portanto, não deveriam se restringir àqueles que praticam e orientam o esporte. Elas deveriam ser ampliadas para incorporar especialistas que possam analisar as relações apontadas anteriormente (esporte e saúde, esporte e economia, esporte e política, dentre outras). A cobertura esportiva tem se caracterizado por uma perspectiva meramente descritiva, impressionista, desprovida de espírito investigativo, crítico, e, com isso, ela o reduz a uma atividade meramente prática, sem considerar todas as dimensões que o definem como processo ou fenômeno socioeconômico, cultural ou político.
Referências
1 Bueno WC. Chutando pra fora – os equívocos do jornalismo esportivo brasileiro. In: Marques JC, Carvalho SC, Camargo VRT. Comunicação e Esporte – Tendências. Santa Maria (RS): Pallotti; 2005. p. 18-25.
2 Bueno WC. Jornalismo especializado no Brasil: teoria, prática e ensino. São Bernardo do Campo (SP): Editora Universidade Metodista de São Paulo; 2015.
3 Bueno WC. Jornalismo Científico no Brasil: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP; 1988.
Sobre o entrevistado
Professor sênior da Universidade de São Paulo (USP), Wilson da Costa Bueno é jornalista, com mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação e especialização em Comunicação Rural, todos na USP. Já orientou cerca de 120 dissertações e teses em Comunicação/Jornalismo. Tem mais de uma dezena de livros, e-books publicados e organizados, além de dezenas de capítulos em livros da área e artigos em revistas científicas do país e do exterior. Atua, especialmente, nas áreas de Comunicação e Jornalismo Especializado. E-mail: wilson@comtexto.com.br