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Audiência, o 11º valor-notícia do jornalismo

Por Sergio Quintanilha

Nelson Traquina, professor português, selecionou 10 critérios que os jornalistas usam para transformar um fato em notícia: morte, notoriedade, proximidade, relevância, novidade, tempo, notabilidade, inesperado, conflito/controvérsia e infração/escândalo.

Segundo Traquina, para que um fato ou acontecimento se transforme em notícia, é preciso passar por esses filtros. Eles são os valores-notícia, ou seja, uma série de critérios de noticiabilidade que farão determinado fato ser noticiado.

Estudos indicam que nos últimos 200 anos os jornalistas se guiaram mais ou menos por esses critérios para reportar as notícias nas diferentes mídias. De forma geral, todos estavam cientes de que a audiência que cada um desses valores-notícia entrega dependia da intensidade do fato. Por exemplo: a morte do piloto Ayrton Senna no GP de San Marino de 1994, num acidente, foi um acontecimento que gerou enorme audiência.

Pelos critérios de Traquina, aquele fato reuniu os seguintes valores-notícia: morte, notoriedade (Senna era um ídolo mundial), proximidade (era brasileiro), relevância (era tricampeão da Fórmula 1), tempo (fazia 10 anos que não havia um acidente fatal na F1 e num único fim de semana houve duas mortes; Roland Ratzenberger se acidentou e morreu um dia antes) e inesperado (a Fórmula 1 era considerada segura até dois dias antes).

De lá para cá, entretanto, quase 30 anos se passaram e o mundo mudou – graças à revolução digital, o jornalismo passou por uma revolução que acelerou o tempo, tirou dos jornalistas a prerrogativa de difundir a notícia e embolou notícias e fofocas de tal maneira que, num grande portal da internet, não há hierarquia entre o jornalismo e entretenimento.

Mas isso não é tudo. Junto com a revolução digital e a ascensão de não jornalistas disputando espaço editorial, veio o Big Data, baseado em algoritmos, e a precarização do mercado de trabalho. Muitos jornalistas passaram a trabalhar por conta própria, sem a segurança de uma redação, um chefe, editores, fotógrafos, revisores, publicitários, especialistas em marketing de circulação etc.

Para sobreviver no jornalismo, os profissionais do setor passaram a depender totalmente da audiência. Como quase toda a publicidade migrou para o Google e o Facebook, e o conteúdo da internet é majoritariamente gratuito, os jornalistas só conseguem ganhar dinheiro por meio de altas audiências, que atraem para suas matérias os anúncios leiloados pelo Google e outras empresas de publicidade virtual.

Portanto, os jornalistas que estão fora da grande mídia praticamente foram obrigados a acrescentar um novo valor-notícia em seus critérios: a audiência. Muitas vezes, para o jornalista profissional, não basta publicar uma notícia que atenda aos 10 critérios originais selecionados por Traquina se ele não render cliques, audiência.

O jornalismo está perdendo qualidade porque quase toda a cobertura se tornou espetacular ou espetaculosa. Cada vez menos jornalistas têm vergonha de apelar ao clickbait, uma tática usada na internet para gerar tráfego on-line por meio de conteúdos enganosos ou sensacionalistas.

O que era um mundo à parte, nas chamadas yellow pages ou nos programas do submundo policial, se tornou regra em todos os setores. Por causa disso, a cobertura da Fórmula 1 e da indústria automobilística, por exemplo, mas não só delas, tornou-se muito complicada. Basta ver as chamadas de vídeos no YouTube – escolha qualquer tema (pode ser a Guerra da Ucrânia, para sairmos do esporte).

A busca pela audiência começa no título. Os algoritmos são tão poderosos, atualmente, que eu me acostumei a começar a escrever minhas matérias só depois que eu tenho um título pronto e no padrão de publicação do portal Terra: 1 linha de 59 caracteres. Mais do que isso, “estoura”. Não é tão rígido como era nos jornais e nas revistas, dá para publicar se estourar, mas na chamada da home ou do Google (que é mais importante) o título vai aparecer incompleto e com reticências no final da linha (…). Isso é meio caminho andado para o leitor rejeitar a matéria.

Então penso no tema principal e vou buscando as palavras mais fortes. Precisa ter um verbo forte, caso contrário, uma ótima matéria pode ficar sem audiência. Atenção aqui que não é preciso mentir ou ser sensacionalista, mas sim considerar a importância da audiência no crivo da classificação de notícias.

Ayrton Senna: palavra mágica para as buscas do Google.

Alguns fatos concretos do vi no site Parabólica, do Terra. Lançado em outubro de 2020, até hoje a matéria mais lida do Parabólica é uma que tratava de uma crise na Mercedes, que não tinha renovado o contrato de Lewis Hamilton e ainda poderia sofrer com a saída do chefe da equipe, Toto Wolf. Qual seria um título “normal” para esta notícia? Algo como: Renovação de Hamilton e Wolf deixa Mercedes apreensiva.

Mas optamos por algo diferente: Equipe Mercedes: um império à beira do abismo. Exagero, sim?  Mas fizemos como teste. E a matéria bombou. Mas, por óbvio, não íamos exagerar na tinta em todos os títulos.

A segunda matéria mais lida é: Senna desprezava Schumacher quando assinou com a Williams. A força desse título está na palavra Senna, na rivalidade com Schumacher e na palavra “desprezava”. Aqui temos o valor-notícia conflito/controvérsia, mas essa matéria foi “criada” porque queríamos audiência. Então, buscamos um fato do passado para atender ao desejo dos leitores atuais por temas sensacionalistas.

Uma terceira matéria – que reputo como a melhor de todas já escrita no Parabólica –, trouxe um título perfeito, inclusive com a palavra mágica “Senna”, mas não deu tanta audiência porque convida o leitor a pensar. É genial sob o ponto de vista que contém um mistério, mas as pessoas não querem mais saber de verdades sutis – elas querem o espetáculo, o show, a emoção gritando na cara deles.

A matéria dizia que depois da chegada das redes sociais, ninguém mais terá a chance de controlar sistematicamente a própria imagem e de ser uma unanimidade. E mostrava como Ayrton Senna, que tinha total domínio sobre sua imagem, hoje poderia ser “cancelado” por várias razões. Infelizmente, a matéria não teve a audiência merecida com este título: Não haverá outro Senna. E não é pelo que você está pensando.

O texto era também um sutil tapinha na cara daqueles que dizem que “a Fórmula 1 morreu em 1994”. Não, não morreu, mas se você disser que não morreu esse público vai ignorar o que é uma verdade factual.

Para o todo-poderoso Google, a única palavra forte do título era Senna, porém concorrendo com várias outras rastreadas pelos mecanismos de busca. Então desistimos de fazer textos “pensados e profundos” no Parabólica e optamos pela cobertura factual da Fórmula 1, além de trazer curiosidades e análises técnicas dos assuntos que estão bombando.

Por isso, apesar de ser ancorada nos algoritmos e não nos critérios jornalísticos, hoje temos a audiência como o 11º valor-notícia do jornalismo, uma pequena tragédia que certamente mereceria um estudo fantástico do saudoso Nelson Traquina.

Sergio Quintanilha é doutorando em Ciências da Comunicação na ECA-USP e escreve sobre automobilismo desde 1989 – twitter: @QuintaSergio