EM DISPUTA

Pierre Bourdieu e a Sociologia do Esporte

Nesta coluna, apresentarei, de forma muito breve, algumas das contribuições de um dos maiores sociólogos do século XX para a Sociologia do Esporte: Pierre Bourdieu. Também indicarei, igualmente de forma breve, como ele explica a emergência e desenvolvimento do “esporte moderno”. Desde a década de 1970, Bourdieu tem exercido forte influência sobre os estudos sobre o esporte. Essa influência intensificou-se a partir do momento em que os pesquisadores do Instituto Nacional do Esporte e da Educação Física (INSEP), da França, tiveram acesso aos artigos preparatórios à sua obra máxima: o livro “A distinção: crítica social do julgamento”, publicado em 1979. Livro que contribui para que as análises do esporte passassem a relacionar as práticas esportivas e as filiações sociais, projetando essas práticas em sistema, ou seja, compreendendo que esporte só pode ser pensado em relação aos demais. Para Bourdieu, o prestígio de um esporte (ou sua ausência) só pode ser compreendido se considerarmos o daqueles com os quais converge e o daqueles aos quais se opõe. Este enfoque nos contrastes chamou a atenção dos pesquisadores da área de esporte para a necessidade de aprofundar o espectro dos esportes baseando-se nos gostos, sensibilidades e modos de ser das classes sociais, apontando para um novo programa de pesquisa, que passou a buscar compreender, outras coisas, a formação do gosto esportivo (VIGARELLO, 2005).

            De acordo com Bourdieu (1993; 2002), esse gosto não pode ser compreendido sem que entendamos a relação de cada classe social com o corpo, ou seja, sem que entendamos as funções e os significados que ele tem para cada uma delas. Mais exatamente, sem que entendamos que as classes dominantes tendem a tratar o corpo como um fim e que a classe trabalhadora tende a tratá-lo como um instrumento. Além de contribuir para a análise da formação do gosto esportivo, Bourdieu nos oferece um relevante instrumento científico para a compreensão das interações que ocorrem no interior do universo esportivo: a noção de campo social. Mas o que seria um campo social? Grosso modo, campos sociais são espaços de interação relativamente autônomos, ou seja, um microcosmo dotado de leis próprias e caracterizados por lutas sociais pela acumulação do seu capital específico. Partindo dessa ideia, Bourdieu sustenta que os fenômenos esportivos não podem ser compreendidos por meio de uma leitura “externalista”, isto é, através da relação direta com as condições sociais e econômicas da sociedade correspondente. Ao contrário, a história do esporte possuiria seu tempo próprio, suas próprias leis evolutivas e suas próprias crises.

            Além de possuir uma autonomia parcial mais ou menos acentuada, o campo esportivo, como qualquer campo, seria caracterizado por assimetrias e diferenças sociais relativamente estáveis, ou seja, teria dominantes e dominados, que se comportariam como se estivessem num jogo, com a diferença que suas regras podem ser objeto de disputa. Segundo Bourdieu (2002), os agentes sociais, dependendo do seu capital, adotam estratégias de conservação ou de transformação da estrutura do campo: quanto mais dominante for um agente, mais tende a lutar pela preservação da estrutura do campo e de sua posição. Assim, no campo esportivo, a noção (aristocrática) de fair play seria uma forma de triunfar dentro das regras – algo totalmente oposto à busca plebeia da vitória a qualquer custo. Não à toa, para o sociólogo francês, a formação de tal campo estaria associada a uma filosofia política do esporte, que, por sua vez, estaria ligada a um “ideal moral” de classe.

            De acordo com Bourdieu (1993; 1997), ao levar as marcas da ideologia aristocrática, sendo visto como uma forma de “moldar o caráter”, o “esporte moderno” teria, nos seus primórdios, desempenhado uma função de controle social. Afinal, os adolescentes poderiam ser facilmente supervisionados nos campos de jogo, onde se dedicariam a uma atividade “saudável”, ao invés de se envolverem em brigas e atos de vandalismo. Esta função de controle, inclusive, explicaria, em parte, a própria popularização do esporte e o crescimento das associações esportivas. Enxergando nele uma forma econômica de mobilizar, ocupar e controlar as massas, as autoridades públicas iniciaram, de acordo com o autor, um processo de reconhecimento e apoio a tais associações, ajudando a popularizar as novas modalidades esportivas. Popularização que teria feito com que o esporte, nascido de jogos verdadeiramente populares, retornasse ao povo em forma de espetáculos produzidos para ele próprio – o que teria ampliado significativamente seu alcance, indo muito além de seus praticantes. Com isto, teria surgido um público sem a competência específica para traduzi-lo, incapaz de sentir prazer com a presteza de um movimento ou com a combinação exitosa de uma estratégia de equipe e que se sentiria atraído somente pelo sensacional.  

Referências

BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2002.

_____. Os Jogos Olímpicos. In: BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 123-128.

_____. Deporte y clase social. In: BABERBERO, José Ignácio. Materiales de sociología del deporte. 2. ed. Madri: La Piqueta, 1993. p. 47-55.

VIGARELLO, Georges. Sistemas de esportes; esportes concorrentes. In: ENCREVÉ, Pierre; LAGRAVE, Rose-Marie (Coord.). Trabalhar com Bourdieu. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 185-196.