EM DISPUTA

Hooliganismo: a perspectiva de Eric Dunning

Em tempos de Copa do Mundo, a discussão sobre o fenômeno da violência envolvendo torcedores de futebol (ou hooliganismo, na expressão criada pela imprensa inglesa e consagrada pela literatura científica internacional) costuma vir à tona. Certamente, entre os maiores estudiosos do fenômeno, destaca-se Eric Dunning, discípulo do renomado sociólogo alemão Norbert Elias. Assim, para compreendermos as análises feitas pelo primeiro das relações entre violência e futebol, vale sintetizarmos os aspectos centrais da teoria do processo civilizador, desenvolvida pelo segundo. Grosso modo, essa teoria parte do pressuposto de que os seres humanos e as sociedades são formadas por processos. Mais ainda, que os processos vividos por essas últimas, principalmente os de longo prazo, são “cegos”, no sentido de serem, em grande medida, as consequências não intencionais de atos individuais intencionais. Ademais, a referida teoria parte do pressuposto de que as sociedades humanas são constituídas por indivíduos radicalmente interdependentes (DUNNING, 2011).

A partir desses dois pressupostos gerais, ela vai buscar entender uma série de modificações que, desde o fim da Idade Média, afeta uma variedade de fenômenos aparentemente diversos, como esporte e alimentação, no contexto europeu – principalmente, na Alemanha, na Inglaterra e na França. Modificações que estariam relacionadas ao progressivo aumento civilizacional nesses lugares. Importante notar, contudo, que, do ponto de vista de Elias, o conceito de civilização não possui uma conotação moral. Trata-se somente de um termo técnico. Termo que se refere a quatro processos interrelacionados que vem ocorrendo no referido contexto: o refinamento dos padrões sociais, o crescimento das pessoas para exercerem um autocontrole mais rigoroso e contínuo, uma mudança no equilíbrio da censura interna e da censura externa a favor da primeira e um crescimento do “superego” como regulador de comportamento (DUNNING, 2011).

A partir da compreensão desses processos, Elias e Dunning entendem que o esporte moderno teria começado a ganhar forma na Grã-Bretanha no fim do século XVIII, devido, principalmente, ao aumento do controle da violência. Sem deixar de reconhecer a importância de outros fatores, como o desenvolvimento da ciência moderna, que contribuiu para o desenvolvimento de novas formas de medição do espaço e do tempo, e a garantia da liberdade de associação, que permitiu a formação formassem os primeiros clubes e associações esportivas, os autores enxergam na formação da primeira democracia parlamentar do mundo e o surgimento correlato da noção de fair play como fundamentais para a emergência do esporte moderno. Graças à noção de fair play, houve, segundo eles, uma equalização nas disputas que fez com que as pessoas mais poderosas aceitassem abrir mão das vantagens que porventura adviesse do uso de uma arma como uma espada (DUNNING, 2011).

Mas o que explicaria a violência em esportes como o futebol e, mais exatamente, o fenômeno do hooliganismo? Fundamentalmente, para Dunning (2014), o hooliganismo seria uma “explosão descivilizadora”, geradas pela não incorporação por parte dos setores “rudes” da classe trabalhadora inglesa dos valores e modos de conduta “mais civilizados”. Os jovens oriundos desses segmentos encontrariam, no contexto do futebol, um espaço privilegiado para brigas, agressões e outras formas de violência – que, no seu meio-social, serviriam como um meio de afirmação pública de masculinidade. Diferentemente das classes sociais mais “estabelecidas”, a prática da violência nesses segmentos não seria necessariamente motivo de vergonha. Pelo contrário, seria mais aberta, tolerada e, frequentemente, até mesmo motivo de orgulho. Isso se deve ao fato de que a eles seriam negados status e gratificação nas esferas educativa e ocupacional.  Além disso, haveria, nesses segmentos, menor controle das crianças e adolescentes por parte dos adultos. O fato de passarem grande parte do tempo nas ruas, socializando com outras crianças e adolescentes da mesma idade, os levariam a interagir agressivamente entre eles e a desenvolver hierarquias de domínio baseadas largamente na idade, na força física e na coragem.

De acordo com Giulianotti (2002), essa interpretação do hooliganismo atraiu críticas de diversos pesquisadores sobre a maior parte dos pontos importantes. Destaco duas delas: primeira, a de que o hooliganismo não deve ser tomado como um fenômeno mundial, devido às particularidades da violência no futebol ao redor do mundo. Segunda, a de que ele não deve ser associado, de forma umbilical, às classes “mais baixas” e à sua socialização “grosseira”, devido à existência de indicativos da participação das classes médias e altas nele. Uma crítica mais geral à obra de Dunning e Elias diz respeito à própria compreensão da violência. Afinal, se compreendermos que um ato, para ser violento, precisa definido, interpretado e vivenciado como tal, então, o processo civilizador não pode ter reduzido a violência, mas amplificado ela, na medida justamente em que passa a conceber uma série de novas práticas como violentas.

 

Referências

DUNNING, Eric. “Figurando” o esporte moderno: algumas reflexões sobre esporte, violência e civilização com referência especial ao futebol. Revista de Ciências Sociais. v. 42, n. 1, 2011, p. 11-26

 

_____. Sociologia do esporte e os processos civilizatórios. São Paulo: Annablume, 2014.

 

GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002.

 

* Felipe Lopes é colunista e professor universitário