OLIMPÍADA & CAIPIRA

Jogos Eletrônicos, Abertos e Olímpicos: similaridades e semelhanças

“Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que pode imaginar nossa vã filosofia.”
(William Shakespeare, ‘Hamlet’)

 

Logo na primeira semana do novo governo federal e da retomada do Ministério do Esporte, Ana Moser, uma das maiores jogadoras de vôlei da história, medalhista olímpica e atual ministra, fez uma declaração que repetiu na comunidade esportiva – e fora dela. Em entrevista ao UOL, ela afirmou que o eSport, os famosos jogos eletrônicos, “são uma indústria de entretenimento, mas não esporte”.

Não me interessa retomar essa polêmica para defender posicionamento A ou B. Na verdade, o que chamou a atenção foi justamente as argumentações – favoráveis e contrárias – que as pessoas e entidades utilizaram nos dias seguintes para justificarem seus pontos de vista. “Ah, esporte é atividade física”. “Não, esporte não pertence a uma empresa”. “Esporte precisa levar público”, entre tantos tópicos ditos e publicados internet afora.

Bom, é preciso pontuar que todas estas definições estão corretas. Ou, na melhor das hipóteses, não estão totalmente erradas. Sim, Horácio, há mais significados de esporte entre o céu e a terra do que pode imaginar os torcedores.

A grande maioria das pessoas tentaram impor rótulos específicos em esporte, um conceito considerado “polissêmico” por Mauro Betti (1998) e dividido em três categorias por Manoel Tubino (1999). Logo, é um erro querer definir o que é ou não é esporte a partir de um único prisma. Até porque seria necessário se questionar: de que esporte estamos falando?

Certamente a partida de futebol entre amigos num fim de semana não é a mesma coisa do que a final da Copa do Mundo entre Argentina e França. Assim como a diversão individual no videogame também é bem diferente do que uma fase decisiva do CBLOL.

Mas essas práticas compartilham similaridades que se concentram em uma única palavra que, veja só, está presente nesses dois universos: o jogo. Fosse matemática, seria a equação básica do esporte. Fosse química, o elemento primordial. Ele representa a síntese do que é ser esportivo, ou seja, a capacidade lúdica que oferece a atletas, torcedores e demais pessoas envolvidas – mesmo em um ambiente altamente profissional e competitivo como observamos atualmente.

Não à toa, está presente tanto na definição do videogame (jogo eletrônico) quanto na nomenclatura da maior competição poliesportiva do planeta (jogos olímpicos) e suas variáveis (como os jogos abertos do interior).

O conceito de jogo é um elemento-chave para compreender o esporte como esse fenômeno polissêmico. Tudo o que ele acarreta parte desse princípio lúdico, desde a simples brincadeira entre crianças até as engrenagens que mantêm as grandes competições milionárias mundo afora. Acompanhamos esportes e jogamos videogames porque eles proporcionam um tempo e um espaço únicos para seus praticantes (ocasionais ou profissionais).

É dentro desse tempo e desse espaço que o jogo se desenvolve e a prática esportiva se consolida. Johan Huizinga (2000), por exemplo, afirma que o jogo representa a “possibilidade de experimentar, de criar e de transformar o mundo”. Roger Caillois (2017) também destaca a liberdade criativa, uma vez que seus participantes podem definir “o que é e o que não é do jogo, ou seja, o permitido e o proibido”.

Em ambos, a característica que se destaca é a participação. Participar para criar algo, participar para brincar ou até participar para superar limites. Portanto, nenhuma discussão sobre o que é (ou não é) esporte deve ignorar essa capacidade de mobilizar praticantes e torcedores.

Para ser um esporte de verdade, é preciso manter as características do jogo – o que, por sua vez, deve permitir que as pessoas possam realizar a atividade e consumi-la de diferentes formas. Por isso é importante lembrar de Vilém Flusser (2008) e a capacidade imaginística das imagens técnicas. Isto é, a possibilidade de “imaginar imagens” que são geradas digitalmente, mas que despertam diferentes sensações em quem as visualizam.

Para manter seu aspecto lúdico, o esporte deve gerar essas imagens para manter a participação e o envolvimento de seu público.

Enquanto aqui no Brasil discute-se se é ou não é esporte, os jogos eletrônicos já mobilizam suas comunidades, com fãs e jogadores (amadores e profissionais) ao redor do mundo. Os Jogos Olímpicos, por sua vez, buscam retomar esse simbolismo – inclusive se aproximando do universo dos videogames. E é algo que falta para os Jogos Abertos do Interior, a nossa Olimpíada Caipira. O evento não consegue mais despertar o fascínio nos torcedores e, não por acaso, não surge com destaque na opinião pública.

Debater a definição de esporte é importante, sem dúvida, principalmente na esfera ministerial que lida com políticas públicas e distribuição de recursos. Mas essa discussão não deve preceder a compreensão dessa importância do que é jogo e esporte. Seja com atividade física ou não, regulamentos, associações ou propriedades intelectuais de empresas privadas, o fato é que as pessoas precisam ter acesso a meios de participação.

Baby Barioni, criador dos Jogos Abertos, sempre teve isso em mente. Organizar uma competição esportiva de grande porte em cidades do interior mostra sua preocupação com isso. Estivesse vivo, não duvido que ele estaria incentivando os jogos eletrônicos. Ele sabia muito bem como mobilizar interesse, sendo responsáveis pelos tours do Harlem Globetrotters no Brasil na década de 1950 e por organizar corridas de automóvel na década de 60, bem antes do boom provocado pelo sucesso da Fórmula 1 no país.

O esporte é um fenômeno social, feito “para relatar o contrato humano”, como ponderou Roland Barthes. Ele não está acima ou abaixo da sociedade, mas dentro dela. Reflete, portanto, nossas inseguranças, receios, qualidades e defeitos. Pode-se perder horas debatendo qual a melhor definição dele ou pode-se assumir que faz parte de nossas vidas, oferecendo o caráter lúdico que tanto precisamos para os desafios do dia a dia – seja com os jogos eletrônicos ou com os jogos abertos ou olímpicos.

 

* Gustavo Longo é jornalista formado pela UNESP/Bauru e Mestre em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM-ECA/USP